sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

As transformações no funk explicam os conceitos hegemonia e cultura

Faça a turma refletir sobre as explicações sociológicas para as mudanças no ritmo, que nasceu como contra hegemônico e se apropriou de elementos da cultura dominante

Objetivos
- Reconhecer os processos de mudança na produção e consumo cultural, utilizando o exemplo do funk carioca
- Compreender os conceitos de dominação cultural e hegemonia

Conteúdo
Cultura

Tempo estimado                                                    Três aulas

Material necessário
- Cópias da reportagem "Funk mais preparado" (VEJA 2344, 23 de outubro de 2013)
- Equipamento de som ou computador com recursos multimídia para reproduzir uma música

Introdução
Originalmente produzido nas favelas, o funk carioca ganhou grande visibilidade nas últimas décadas, sempre acompanhado de polêmicas sobre seu conteúdo e seu valor como movimento cultural e ritmo musical. Em busca da expansão do mercado consumidor também para a classe média, artistas desse gênero têm adequado o conteúdo de suas canções e a estética de seu trabalho a valores mais próximos desse segmento da sociedade, amenizando as letras e até mesmo modificando sua própria postura.
Os conceitos sociológicos de cultura, hegemonia e dominação cultural podem nos ajudar a entender esse fenômeno. Este plano de aula explica uma possibilidade de trabalho para que seus alunos associem esses aspectos teóricos às recentes mudanças do ritmo.

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Desenvolvimento
1ª etapa
Inicie a aula com uma conversa informal sobre música. Procure saber quais os gêneros musicais mais ouvidos pela garotada. Estimule-os a argumentar a respeito de suas preferências: por que certo "som" agrada mais? Existem músicas e artistas "piores" ou "melhores"? O que causa a visibilidade dos cantores e bandas?
Durante essa discussão, é provável que o funk seja citado pela turma. Foque a conversa sobre esse estilo. O que a turma conhece sobre ele? Conhecem as polêmicas a seu respeito? Gostam? Para ajudar na discussão, divida o quadro em duas colunas: de um lado, anote as impressões e argumentos positivos em relação ao gênero e do outro, os negativos. Intervenha pedindo que os alunos desenvolvam seu raciocínio, apresentando justificativas e exemplos.
Em seguida, distribua as cópias da reportagem "Funk mais preparado", publicada em Veja, e leia com a turma em voz alta. Ao final, promova uma discussão. Qual o principal argumento apresentado na reportagem? O que seria a "lapidação comportamental, visual e até emocional" de artistas como Anitta e Naldo? Em quais aspectos esses novos artistas se diferem do que antes se considerava funk? O que provocou essa mudança? Estimule a turma a apresentar hipóteses e argumentos sobre as transformações do ritmo.

2ª etapa
Faça uma aula expositiva para apresentar o conceito de cultura e contextualizar o surgimento do funk.
Inicie explicando que o termo cultura, nas Ciências Sociais, é usado para descrever padrões comportamentais, símbolos, valores e normas compartilhados por diferentes grupos. É por meio desses elementos compartilhados que as pessoas agem, sentem, se relacionam e produzem bens materiais e imateriais. Tendo isso em consideração: não é possível categorizar esses elementos como melhores ou piores. Os padrões culturais variam de acordo com os grupos a que pertencem, o tempo em que acontecem e representam diferentes formas de vida.
Muito mais do que ser sinônimo de um gênero musical popular, o funk carioca é um movimento cultural. Como tal, representa os valores de determinados círculos sociais e pode se alterar no decorrer do tempo. Sua origem se deu na cidade do Rio de Janeiro, onde se realizavam na década de 1980 bailes para tocar, dançar e curtir ritmos da cultura negra e do movimento hip-hop norte-americanos: o soul, o rap, o funk americano e a música eletrônica importada de Nova Iorque e Miami eram o combustível desses encontros.
Foi da mistura do ritmo miami bass e da inserção de letras sobre o cotidiano das comunidades dos morros e favelas do Rio de Janeiro que surgiu a versão brasileira do funk. Inicialmente na forma de "raps" ou "melôs", essas músicas formavam um retrato rico sobre os costumes e cultura das favelas cariocas. Tinham, portanto, um caráter semelhante ao samba de raiz ou o hip-hop americano: os funks eram uma representação importante da identidade negra na cidade do Rio de Janeiro e da cultura "favelada."
Com o passar do tempo, novas influências e artistas contribuíram para mudanças no movimento funk. Pergunte à turma quais outros artistas do ritmo eles conhecem. Também pergunte se eles conhecem divisões dentro do próprio gênero. É provável que eles comentem a existência do "proibidão" (com letras de forte apelo sexual e apologia ao crime), o funk de ostentação (em que os artistas falam sobre produtos de luxo) e variantes mais românticas, como as praticadas por Claudinho e Buchecha e o MC Marcinho.

3ª etapa
Apresente trechos do "Rap da Felicidade", funk de muito sucesso nos anos 1990. A música está disponível para reprodução em serviços gratuitos na Internet (por exemplo, aqui). Se preferir, ouça a música junto com a turma com a ajuda de equipamentos multimídia.
Rap da Felicidade (trechos)
Eu só quero é ser feliz
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

(...)

Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer
Com tanta violência eu tenho medo de viver
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado
A tristeza e a alegria aqui caminham lado a lado
Eu faço uma oração para uma santa protetora
Mas sou interrompido a tiros de metralhadora
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela
O pobre é humilhado, esculachado na favela
Já não agüento mais essa onda de violência
Só peço, autoridade, um pouco mais de competência

(...)

Diversão hoje em dia não podemos nem pensar
Pois até lá no baile eles vêm nos humilhar
Ficar lá na praça, que era tudo tão normal
Agora virou moda a violência no local
Pessoas inocentes, que não têm nada a ver
Estão perdendo hoje o seu direito de viver
Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela
Só vejo paisagem muito linda e muito bela

Quem vai pro exterior da favela sente saudade
O gringo vem aqui e não conhece a realidade
Vai pra Zona Sul pra conhecer água de coco
E pobre na favela, vive passando sufoco
Trocaram a presidência, uma nova esperança
Sofri na tempestade, agora eu quero a bonança
O povo tem a força, só precisa descobrir
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui.

Discuta a canção com a turma. Pergunte quem já a conhecia e se é possível identificar diferenças em comparação aos funks contemporâneos. Estimule-os a pensar essas diferenças principalmente em termos do conteúdo das letras: qual é o tema do "Rap da Felicidade"? Sobre o que ele fala? Qual a importância da favela nessa letra? Essa temática está presente nos sucessos de artistas como Anitta e Naldo? Se não, por qual motivo? É possível afirmar que o movimento mudou no decorrer do tempo? O argumento apresentado pela reportagem de Veja pode ser empregado para analisar as diferenças observadas?

4ª etapa
Recapitule as discussões anteriores e encerre com uma pequena exposição sobre o conceito dehegemonia.
Segundo Karl Marx (1838 - 1883), os valores e cultura das sociedades capitalistas eram diretamente subordinadas à estrutura econômica, caracterizada pela exploração dos proletários (trabalhadores) pelos burgueses (os empresários, donos dos meios de produção). De forma distinta, o pensador italiano Antonio Gramsci (1891 - 1937), demonstrou que a dominação de classes -- ou hegemonia -- possui também um forte componente cultural. Para ele, o sucesso do capitalismo seria mais bem entendido ao avaliarmos como os dominados aceitam e se identificam com a cultura e os valores das classes dominantes, considerando-os como algo positivo, "senso comum" e algo a ser reproduzido. Assim, para Gramsci, o fim do capitalismo não seria resultado da luta armada, mas principalmente do estabelecimento da hegemonia no campo cultural, por meio da superação dos valores burgueses e o estabelecimento da cultura dos proletários.
Discuta essas ideais com a turma: na opinião deles, a reportagem de Veja retrata uma adequação dos artistas ao padrão cultural vigente, hegemônico? Seria esse funk menos radical uma forma de dominação cultural? Ou, por outro, poderia o discurso amenizado dos novos artistas do funk ser compreendido apenas do ponto de vista comercial, pragmático? Em outras palavras: seria essa somente uma nova forma de buscar mercados e consumidores? A noção de "dominação cultural" faz sentido para a turma?
Por um lado, a trajetória do movimento funk e seu recente movimento de aproximação da cultura pop podem ser entendidos com a ajuda do pensamento de Gramsci: em seus primeiros momentos, ao lidar com temas como a vida e as dificuldades nas favelas, e até mesmo com a exposição da sexualidade e criminalidade, ele se apresentava como uma forma de contestação do discurso hegemônico, e como forma de combate à discriminação e de exposição de problemas sociais. Dessa forma, ao apresentar uma narrativa produzida pelos "pretos e favelados", representava um discurso cultural próprio, contra hegemônico, que não imitava ou repetia os valores da cultura branca das classes altas do Rio de Janeiro.
No entanto, quando os artistas associados com o funk tornam-se mais próximos dos ideais das classes altas, brancas, "do asfalto" - isto é, com menos identificação com o cotidiano das favelas, menos palavrões e referências sexuais, e mais cuidado com sua aparência ¬- ocorre o movimento contrário: nesse aspecto, os artistas estariam reproduzindo a ideologia e a hegemonia cultural burguesa, que recrimina e desencoraja certas atitudes e posturas, e que age com preconceito em relação aos negros, pobres e moradores das comunidades das favelas. Assim, o "funk mais preparado" seria, na verdade, uma forma de manutenção do status quo e da hegemonia das classes dominantes.

Avaliação
Peça que os alunos respondam a um breve questionário sobre os assuntos abordados. Deixe claro que eles precisam expor suas opiniões na elaboração das respostas, buscando nas discussões feitas em sala a fundamentação para seus argumentos. Pergunte:
- Os conteúdos apresentados modificaram de alguma forma a opinião da turma sobre o funk? 
- As mudanças de práticas dos funkeiros destacadas na reportagem de Veja são positivas ou negativas?
- A produção cultural e artística reflete os valores dominantes da sociedade?
Sugira também que eles citem casos de outros gêneros musicais que foram mudando no decorrer do tempo.
Avalie nessa produção a apropriação dos conceitos de cultura e hegemonia e a sua aplicação a situações reais. Após a primeira leitura, aponte possíveis melhorias e peça que eles reescrevam. Considere a última versão.

Quer saber mais?
"O Mundo Funk Carioca", Hermano Vianna, Ed. Zahar, 1988. Apresenta uma discussão aprofundada sobre o início do funk na cidade do Rio de Janeiro. Disponível também em http://www.overmundo.com.br/banco/o-baile-funk-carioca-hermano-vianna
Programa Cultura Urbana (TV Alerj, 2005), especial sobre funk. Contém entrevistas com DJ Marlboro e o antropólogo Hermano Vianna. Disponível no youtube em três partes: parte 1, parte 2 e parte 3.
"A favela tem nome próprio: a (re)significação do local na linguagem do funk carioca", Adriana Carvalho Lopes, Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 9, n. 2, p. 369-390, 2009. Disponível emhttp://www.scielo.br/pdf/rbla/v9n2/02.pdf

Consultoria Maiko Rafael Spiess
Sociólogo e doutorando em Política Científica e Tecnológica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)



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