segunda-feira, 2 de junho de 2014

A prática da "justiça com as próprias mãos" é admissível em uma sociedade civilizada?

Estimule a reflexão sobre a banalização da violência e discuta os contextos culturais e sociais em que ela ocorre

- Desumanização e "coisificação" do outro
- Violência e desigualdade social

Objetivos
- Abordar a problemática da reprodução da violência por meio de sua banalização
- Compreender o que significa a desumanização e a "coisificação" do outro e quais os fatores que contribuem para esses fenômenos 

Anos                              Ensino Médio

Tempo estimado             Três aulas

Materiais necessários
- Cópias da notícia "Adolescente é espancado e preso nu a poste no Flamengo, no Rio", do portal G1 (link aqui).
- Cópias da reportagem "Mulher é espancada até a morte no Guarujá (SP)", do site de Veja (link aqui).
- Computador com equipamento multimídia para projeção de vídeos para os alunos
- Computadores com acesso à internet para uso dos alunos

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Desenvolvimento
1ª etapa
Como introdução, inicie a aula com uma rápida conversa sobre a violência urbana, procurando saber qual é a percepção da turma sobre o tema. Na opinião dos alunos, a violência tem aumentado recentemente? Como eles enxergam seu próprio bairro e cidade? Quais os tipos de violência que mais chamam a atenção? Como os alunos ficam sabendo dos casos de violência? Qual o papel da mídia e veículos de comunicação? Redes de televisão, revistas e jornais dão pouca ou muita atenção para esse problema? 
Distribua as cópias da reportagem do portal G1 "Adolescente é espancado e preso nu a poste no Flamengo, no Rio" para metade da turma. Para a outra metade, entregue as cópias da reportagem "Mulher é espancada até a morte no Guarujá (SP)", do site de Veja. Dê algum tempo para que os alunos leiam os textos individualmente. Em seguida, estimule-os a comparar impressões e ideias com os demais colegas que leram o mesmo texto.
Retome a discussão com toda a turma. O objetivo é que os alunos tenham uma noção geral sobre os acontecimentos descritos. Em primeiro lugar, peça aos estudantes que resumam e expliquem o conteúdo de cada uma das notícias. Faça com que eles descrevam o que aconteceu, quando e quais eram os envolvidos. Você poderá escolher alguns alunos para apresentar esse resumo para os colegas ou deixar que eles tenham essa conversa espontaneamente. Incentive os alunos a apresentarem informações complementares sobre esses casos (se houverem), mas indague-os a respeito das fontes dessas informações. 
Em seguida, solicite que a turma identifique as similaridades e diferenças entre os dois casos descritos. Quais eram os perfis das vítimas? E dos agressores? Como os dois casos terminaram? Quais seriam os possíveis motivos que levam a população a agir, em bando, contra criminosos ou suspeitos? 
Para qualificar o debate, explique que o linchamento (ou justiçamento popular) é uma forma de punição coletiva de alguém envolvido em atividades antissociais ou criminosas. São casos em que a intervenção do Estado e das forças policiais é nula: a própria população toma para si o papel de "julgar" e de aplicar a punição. Nos casos mais brandos, resultam em espancamento dos suspeitos; nos mais graves, frequentemente envolvem sua desfiguração e morte. Essas práticas se diferenciam das chacinas (que são ações premeditadas), por seu caráter súbito, anônimo, desorganizado e carregado de simbolismo (por exemplo, quando criminosos sexuais têm seus órgão genitais mutilados). Vale lembrar ainda que o linchamento não é tipificado no código penal brasileiro, tornando-se quase impossível estimar a quantidade real de linchamentos ocorridos no Brasil anualmente.
Para encerrar esta etapa, indague se a turma tem conhecimento de outros casos similares aos relatados nos textos. Pergunte ainda quais são as possíveis causas de casos como esses e, mais especificamente, quais os motivos para o aparente aumento recente de casos de linchamento e justiça popular no Brasil. Por fim, questione-os sobre os riscos do justiçamento de inocentes, como no caso de Guarujá. Estimule os alunos a tomarem nota dos argumentos apresentados.

2ª etapa
Nesta etapa, você deverá explorar alguns dos motivos frequentemente apresentados para explicar os casos de linchamento. Em primeiro lugar, você poderá abordar a hipótese de que os linchamentos são reações à desordem social e à incapacidade de ação do Estado, o que forçaria os cidadãos a agirem por conta própria.
Para iniciar essa discussão, pergunte aos alunos se eles concordam com a hipótese de que os linchamentos são consequências do aumento da criminalidade e da percepção de que os criminosos não são punidos adequadamente (ou ainda, da ideia de que não costumam ser punidos de qualquer forma). Na opinião deles, um Estado mais presente - representado pelas forças policiais, pelo sistema judiciário, mas também por políticas de assistência e amparo social - seria uma solução para impedir linchamentos? O monopólio do uso legítimo da força por parte das instituições e órgãos estatais é uma forma de evitar esse problema? Nesses casos, qual o papel do sistema judiciário? O controle da violência por parte do Estado é um traço das sociedades e países civilizados?
Para estimular a discussão sobre esse ponto, você poderá explorar as ideias do sociólogo alemão Norbert Elias. Para o autor, o longo processo de formação dos Estados-Nações internamente pacificados, desde a Idade Média, transferiu gradualmente os processos de resolução de conflitos do âmbito individual para o coletivo, criando nas pessoas uma predisposição para as resoluções pacíficas de conflito, em oposição ao recurso da violência. Em outras palavras, trata-se da correlação entre a emergência do Estado e seus mecanismos sociais e o desenvolvimento das formas de autocontrole e de pacificação da vida em sociedade. Esse fenômeno, no entanto, também aumentou a centralidade da violência cometida pelos Estados, cada vez mais os detentores legítimos do monopólio da violência. 
Para os estudantes, essa correlação faz sentido? Na opinião deles é correto afirmar que em sociedades mais civilizadas as pessoas recorrem menos à violência (e, portanto, a formas de justiça com as próprias mãos)? O que idealmente aconteceria com as pessoas linchadas, como nos casos das notícias lidas em sala de aula, em contextos mais "civilizados"?
Em um segundo momento, proponha uma discussão em um sentido distinto: na opinião da turma, é apenas a presença e o correto funcionamento do Estado que determinam os comportamentos civilizados das pessoas? O que leva grupos de pessoas a agir com violência desmedida, sem apurar a verdadeira responsabilidade dos suspeitos? O que pode levar à completa falta de identificação dos linchadores com os acusados, ao ponto de recorrer à violência? Como é possível que, no caso ocorrido em Guarujá, uma dona de casa e mãe de família tenha sido equiparada a uma sequestradora de crianças?
Indique que esses acontecimentos podem ser relacionados com processos complementares de desumanização (ou seja, a destruição da identidade do "outro" como parte da mesma espécie) e de coisificação (sua transformação simbólica em um objeto, em algo que não é semelhante ao humano). Assim, no caso das vítimas de linchamento, o primeiro processo atuaria na eliminação da empatia e identificação com a pessoa linchada, como se ela não possuísse sentimentos ou não sentisse dor. O segundo processo se colocaria na utilização daquele objeto (não mais uma pessoa) para o atingimento de uma finalidade: expressar o medo da violência, a insatisfação com a inoperância do Estado etc. Um exemplo de desumanização e coisificação era o status social dos escravos no Brasil colonial e imperial e em outros países escravocratas. Ao serem considerados "propriedade", essas pessoas eram simultaneamente desumanizadas (isto é, subtraídas de características que os tornam reconhecidos como humanos e, em muitos casos, comparados com animais) e coisificadas (comercializadas e empregadas em trabalho forçado com finalidades econômicas). 
Para concluir esta etapa, estimule os alunos a pensarem como processos de desumanização e coisificação podem ser empregados para compreender os casos recentes de linchamento. Estimule-os a explicar suas opiniões utilizando alguns dos argumentos apresentados em sala de aula. Essa conversa deverá ser retomada na próxima etapa. 

3ª etapa
Utilize o computador com equipamento multimídia para exibir dois vídeos para a turma. Explique que eles assistirão aos dois vídeos e farão observações após a exibição. O primeiro (disponível aqui), é um comentário da jornalista Rachel Sheherazade sobre um caso ocorrido no Rio de Janeiro, no qual um jovem criminoso foi espancado por populares e amarrado a um poste, sem roupas. O segundo, do jornalista Ricardo Boechat (disponível aqui), é um comentário em resposta ao linchamento da dona de casa Fabiane, ocorrido em Guarujá, no qual ele fala sobre o papel das redes sociais e da mídia.
Como forma de avaliação, divida a turma em grupos de até quatro pessoas. Cada grupo terá de elaborar um texto curto, de até cinco parágrafos, comentando os vídeos e relacionando-os com as ideias e conceitos apresentados em sala. Sugira também que eles pensem a respeito da banalização da violência: qual o papel da mídia no caso dos linchamentos e em relação às percepções que temos sobre a violência?
Os alunos poderão usar suas anotações e as instalações da biblioteca para pesquisar mais sobre o tema. Se possível, permita que eles usem um ambiente com computadores e acesso à internet. Nesse caso, você poderá sugerir links para pesquisa, como o texto "Seres sem rumo", de José de Souza Martins, e da entrevista com o sociólogo, "Brasil, o país dos linchamentos", disponível no site do Instituto Humanitas. 
Ao final da atividade, retorne a discussão para o grande grupo. Estimule os alunos a socializarem suas descobertas e opiniões, aproveitando a oportunidade para esclarecer quaisquer dúvidas e questionamentos que possam restar.

Avaliação
Avalie os alunos de acordo com sua participação e domínio dos temas apresentados. Avalie também sua capacidade de trabalhar em grupo, a qualidade do texto final e a capacidade de raciocínio crítico em relação ao conteúdo abordado.

Quer saber mais?
 "Seres sem rumo", texto de José de Souza Martins, Estadão.
 "Brasil, o país dos linchamentos", entrevista com José de Souza Martins, disponível no site do Instituto Humanitas, da Unisinos.
"O Processo Civilizador - Volume 2: Formação do Estado e Civilização", de Norbert Elias, Jorge Zahar Ed., 1994.

Consultoria Maiko Rafael Spiess
Sociólogo, mestre e doutorando em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP


http://revistaescola.abril.com.br/ensino-medio/plano-de-aula-sociologia-pratica-justica-proprias-maos-admissivel-pais-civilizada-782590.shtml

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