As transformações no funk explicam os conceitos
hegemonia e cultura
Faça a turma
refletir sobre as explicações sociológicas para as mudanças no ritmo, que
nasceu como contra hegemônico e se apropriou de elementos da cultura dominante
Objetivos
- Reconhecer os
processos de mudança na produção e consumo cultural, utilizando o exemplo do
funk carioca
- Compreender os
conceitos de dominação cultural e hegemonia
Conteúdo
Cultura
Tempo estimado Três aulas
Tempo estimado Três aulas
Material necessário
- Cópias da
reportagem "Funk mais preparado" (VEJA
2344, 23 de outubro de 2013)
- Equipamento de
som ou computador com recursos multimídia para reproduzir uma música
Introdução
Originalmente
produzido nas favelas, o funk carioca ganhou grande visibilidade nas últimas
décadas, sempre acompanhado de polêmicas sobre seu conteúdo e seu valor como
movimento cultural e ritmo musical. Em busca da expansão do mercado consumidor
também para a classe média, artistas desse gênero têm adequado o conteúdo de
suas canções e a estética de seu trabalho a valores mais próximos desse
segmento da sociedade, amenizando as letras e até mesmo modificando sua própria
postura.
Os conceitos
sociológicos de cultura, hegemonia e dominação cultural podem nos ajudar a entender esse
fenômeno. Este plano de aula explica uma possibilidade de trabalho para que
seus alunos associem esses aspectos teóricos às recentes mudanças do ritmo.
Leia mais
Inicie a aula com
uma conversa informal sobre música. Procure saber quais os gêneros musicais
mais ouvidos pela garotada. Estimule-os a argumentar a respeito de suas
preferências: por que certo "som" agrada mais? Existem músicas e
artistas "piores" ou "melhores"? O que causa a visibilidade
dos cantores e bandas?
Durante essa
discussão, é provável que o funk seja citado pela turma. Foque a conversa sobre
esse estilo. O que a turma conhece sobre ele? Conhecem as polêmicas a seu
respeito? Gostam? Para ajudar na discussão, divida o quadro em duas colunas: de
um lado, anote as impressões e argumentos positivos em relação ao gênero e do
outro, os negativos. Intervenha pedindo que os alunos desenvolvam seu
raciocínio, apresentando justificativas e exemplos.
Em seguida,
distribua as cópias da reportagem "Funk mais preparado", publicada em
Veja, e leia com a turma em voz alta. Ao final, promova uma discussão. Qual o
principal argumento apresentado na reportagem? O que seria a "lapidação
comportamental, visual e até emocional" de artistas como Anitta e Naldo?
Em quais aspectos esses novos artistas se diferem do que antes se considerava
funk? O que provocou essa mudança? Estimule a turma a apresentar hipóteses e
argumentos sobre as transformações do ritmo.
2ª etapa
Faça uma aula
expositiva para apresentar o conceito de cultura e contextualizar o surgimento
do funk.
Inicie explicando
que o termo cultura, nas
Ciências Sociais, é usado para descrever padrões comportamentais, símbolos,
valores e normas compartilhados por diferentes grupos. É por meio desses
elementos compartilhados que as pessoas agem, sentem, se relacionam e produzem
bens materiais e imateriais. Tendo isso em consideração: não é possível
categorizar esses elementos como melhores ou piores. Os padrões culturais
variam de acordo com os grupos a que pertencem, o tempo em que acontecem e
representam diferentes formas de vida.
Muito mais do que
ser sinônimo de um gênero musical popular, o funk carioca é um movimento
cultural. Como tal, representa os valores de
determinados círculos sociais e pode se alterar no decorrer do tempo.
Sua origem se deu na cidade do Rio de Janeiro, onde se realizavam na década de
1980 bailes para tocar, dançar e curtir ritmos da cultura negra e do movimento
hip-hop norte-americanos: o soul, o rap, o funk americano e a música eletrônica
importada de Nova Iorque e Miami eram o combustível desses encontros.
Foi da mistura do
ritmo miami bass e da inserção de letras sobre o
cotidiano das comunidades dos morros e favelas do Rio de Janeiro que surgiu a
versão brasileira do funk. Inicialmente na forma de "raps" ou
"melôs", essas músicas formavam um retrato rico sobre os costumes e
cultura das favelas cariocas. Tinham, portanto, um caráter semelhante ao samba
de raiz ou o hip-hop americano: os funks eram uma representação importante da
identidade negra na cidade do Rio de Janeiro e da cultura "favelada."
Com o passar do
tempo, novas influências e artistas contribuíram para mudanças no movimento
funk. Pergunte à turma quais outros artistas do ritmo eles conhecem. Também
pergunte se eles conhecem divisões dentro do próprio gênero. É provável que
eles comentem a existência do "proibidão" (com letras de forte apelo
sexual e apologia ao crime), o funk de ostentação (em que os artistas falam
sobre produtos de luxo) e variantes mais românticas, como as praticadas por
Claudinho e Buchecha e o MC Marcinho.
3ª etapa
Apresente trechos
do "Rap da Felicidade", funk de muito sucesso nos anos 1990. A música
está disponível para reprodução em serviços gratuitos na Internet (por exemplo, aqui).
Se preferir, ouça a música junto com a turma com a ajuda de equipamentos
multimídia.
Rap da Felicidade
(trechos)
Eu só quero é ser feliz
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar
(...)
Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer
Com tanta violência eu tenho medo de viver
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado
A tristeza e a alegria aqui caminham lado a lado
Eu faço uma oração para uma santa protetora
Mas sou interrompido a tiros de metralhadora
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela
O pobre é humilhado, esculachado na favela
Já não agüento mais essa onda de violência
Só peço, autoridade, um pouco mais de competência
(...)
Diversão hoje em dia não podemos nem pensar
Pois até lá no baile eles vêm nos humilhar
Ficar lá na praça, que era tudo tão normal
Agora virou moda a violência no local
Pessoas inocentes, que não têm nada a ver
Estão perdendo hoje o seu direito de viver
Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela
Só vejo paisagem muito linda e muito bela
Quem vai pro exterior da favela sente saudade
O gringo vem aqui e não conhece a realidade
Vai pra Zona Sul pra conhecer água de coco
E pobre na favela, vive passando sufoco
Trocaram a presidência, uma nova esperança
Sofri na tempestade, agora eu quero a bonança
O povo tem a força, só precisa descobrir
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui.
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar
(...)
Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer
Com tanta violência eu tenho medo de viver
Pois moro na favela e sou muito desrespeitado
A tristeza e a alegria aqui caminham lado a lado
Eu faço uma oração para uma santa protetora
Mas sou interrompido a tiros de metralhadora
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela
O pobre é humilhado, esculachado na favela
Já não agüento mais essa onda de violência
Só peço, autoridade, um pouco mais de competência
(...)
Diversão hoje em dia não podemos nem pensar
Pois até lá no baile eles vêm nos humilhar
Ficar lá na praça, que era tudo tão normal
Agora virou moda a violência no local
Pessoas inocentes, que não têm nada a ver
Estão perdendo hoje o seu direito de viver
Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela
Só vejo paisagem muito linda e muito bela
Quem vai pro exterior da favela sente saudade
O gringo vem aqui e não conhece a realidade
Vai pra Zona Sul pra conhecer água de coco
E pobre na favela, vive passando sufoco
Trocaram a presidência, uma nova esperança
Sofri na tempestade, agora eu quero a bonança
O povo tem a força, só precisa descobrir
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui.
Discuta a canção
com a turma. Pergunte quem já a conhecia e se é possível identificar diferenças
em comparação aos funks contemporâneos. Estimule-os a pensar essas diferenças
principalmente em termos do conteúdo das letras: qual é o tema do "Rap da
Felicidade"? Sobre o que ele fala? Qual a importância da favela nessa
letra? Essa temática está presente nos sucessos de artistas como Anitta e
Naldo? Se não, por qual motivo? É possível afirmar que o movimento mudou no
decorrer do tempo? O argumento apresentado pela reportagem de Veja pode ser empregado para analisar as
diferenças observadas?
4ª etapa
Recapitule as
discussões anteriores e encerre com uma pequena exposição sobre o conceito dehegemonia.
Segundo Karl Marx
(1838 - 1883), os valores e cultura das sociedades capitalistas eram
diretamente subordinadas à estrutura econômica, caracterizada pela exploração
dos proletários (trabalhadores) pelos burgueses (os empresários, donos dos
meios de produção). De forma distinta, o pensador italiano Antonio Gramsci
(1891 - 1937), demonstrou que a dominação de classes -- ou hegemonia -- possui também um forte componente
cultural. Para ele, o sucesso do capitalismo seria mais bem entendido ao
avaliarmos como os dominados aceitam e se identificam com a cultura e os
valores das classes dominantes, considerando-os como algo positivo, "senso
comum" e algo a ser reproduzido. Assim, para Gramsci, o fim do capitalismo
não seria resultado da luta armada, mas principalmente do estabelecimento da
hegemonia no campo cultural, por meio da superação dos valores burgueses e o
estabelecimento da cultura dos proletários.
Discuta essas
ideais com a turma: na opinião deles, a reportagem de Veja retrata uma
adequação dos artistas ao padrão cultural vigente, hegemônico? Seria esse funk
menos radical uma forma de dominação cultural? Ou, por outro, poderia o
discurso amenizado dos novos artistas do funk ser compreendido apenas do ponto
de vista comercial, pragmático? Em outras palavras: seria essa somente uma nova
forma de buscar mercados e consumidores? A noção de "dominação
cultural" faz sentido para a turma?
Por um lado, a
trajetória do movimento funk e seu recente movimento de aproximação da cultura
pop podem ser entendidos com a ajuda do pensamento de Gramsci: em seus
primeiros momentos, ao lidar com temas como a vida e as dificuldades nas
favelas, e até mesmo com a exposição da sexualidade e criminalidade, ele se
apresentava como uma forma de contestação do discurso hegemônico, e como forma
de combate à discriminação e de exposição de problemas sociais. Dessa forma, ao
apresentar uma narrativa produzida pelos "pretos e favelados",
representava um discurso cultural próprio, contra hegemônico, que não imitava
ou repetia os valores da cultura branca das classes altas do Rio de Janeiro.
No entanto,
quando os artistas associados com o funk tornam-se mais próximos dos ideais das
classes altas, brancas, "do asfalto" - isto é, com menos
identificação com o cotidiano das favelas, menos palavrões e referências
sexuais, e mais cuidado com sua aparência ¬- ocorre o movimento contrário:
nesse aspecto, os artistas estariam reproduzindo a ideologia e a hegemonia
cultural burguesa, que recrimina e desencoraja certas atitudes e posturas, e
que age com preconceito em relação aos negros, pobres e moradores das
comunidades das favelas. Assim, o "funk mais preparado" seria, na
verdade, uma forma de manutenção do status quo e da hegemonia das classes
dominantes.
Avaliação
Peça que os
alunos respondam a um breve questionário sobre os assuntos abordados. Deixe
claro que eles precisam expor suas opiniões na elaboração das respostas,
buscando nas discussões feitas em sala a fundamentação para seus argumentos.
Pergunte:
- Os conteúdos
apresentados modificaram de alguma forma a opinião da turma sobre o funk?
- As mudanças de
práticas dos funkeiros destacadas na reportagem de Veja são positivas ou negativas?
- A produção
cultural e artística reflete os valores dominantes da sociedade?
Sugira também que
eles citem casos de outros gêneros musicais que foram mudando no decorrer do
tempo.
Avalie nessa
produção a apropriação dos conceitos de cultura e hegemonia e a sua aplicação a situações reais.
Após a primeira leitura, aponte possíveis melhorias e peça que eles reescrevam.
Considere a última versão.
Quer saber mais?
"O Mundo
Funk Carioca", Hermano Vianna, Ed. Zahar, 1988. Apresenta uma discussão
aprofundada sobre o início do funk na cidade do Rio de Janeiro. Disponível
também em http://www.overmundo.com.br/banco/o-baile-funk-carioca-hermano-vianna
Programa Cultura
Urbana (TV Alerj, 2005), especial sobre funk. Contém entrevistas com DJ
Marlboro e o antropólogo Hermano Vianna. Disponível no youtube em três partes: parte 1, parte 2 e parte 3.
"A favela
tem nome próprio: a (re)significação do local na linguagem do funk
carioca", Adriana Carvalho Lopes, Revista Brasileira de Linguística
Aplicada, Belo Horizonte, v. 9, n. 2, p. 369-390, 2009. Disponível emhttp://www.scielo.br/pdf/rbla/v9n2/02.pdf
Consultoria Maiko Rafael
Spiess
Sociólogo e doutorando em Política Científica e Tecnológica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Sociólogo e doutorando em Política Científica e Tecnológica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)